terça-feira, 22 de agosto de 2017

Reforma política e "distritão": o eterno retorno no Direito Constitucional


A comissão da Câmara dos Deputados que analisa a reforma política aprovou, na calada da noite — em uma espécie de midnight congressman act —, a alteração do sistema eleitoral para composição dessa mesma Casa Legislativa. Proposital ou não, o deslinde preliminar dessa questão em meio à madrugada tem um potencial simbólico incomensurável. No modo como foi encaminhado consensualmente pela comissão, o novo modelo político seria implementado em dois tempos: primeiro, uma regra de transição, que valeria para as eleições de 2018; depois a implementação, por assim dizer, efetiva do novo modelo, a partir de 2022. Na fase de transição, o sistema eleitoral adotado seria o chamado “distritão”, no qual cada unidade federativa é considerada um distrito que elege, pelo voto majoritário, os candidatos mais votados segundo o número de cadeiras a que tem direito na Câmara dos Deputados. Na fase de implementação efetiva, a partir da eleição de 2022, teríamos um sistema misto, a combinar o distrital com o proporcional.

Como dito acima, o potencial simbólico da votação noturna salta aos olhos. Ademais, é também igualmente impactante o modo como nossos representantes desprezam a inteligência alheia. Essa comissão foi constituída para cumprir uma demanda legítima da sociedade que se projeta no horizonte pelo menos desde junho de 2013. Com efeito, existe um lugar comum em nosso espaço público de discussões no sentido de que há pontos de nosso sistema político que precisam ser reformados. Nessa medida, um dos pontos sensíveis dessa demanda passa, exatamente, pela modificação do sistema eleitoral utilizado para preencher as vagas disponíveis na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores na perspectiva de superar — ou, pelo menos, diminuir — as disfuncionalidades que são sabidamente conhecidas e que parecem ter encontrado o paroxismo nas últimas eleições. Assim, o relatório apresenta, pro futuro, uma solução razoável. Um sistema eleitoral que, sem embargo das possíveis divergências quanto a ser ele ou não o melhor modelo, possui uma reconhecida autoridade.
Mas essa solução só valerá a partir de 2022. Em 2018, todavia, o relatório nos impõe o — risível — “distritão”. É absolutamente constrangedor perceber que essa manobra se apresenta como uma pornográfica usurpação de uma demanda legítima da sociedade em favor da preservação do modo de se fazer política no Brasil. Exatamente aquele que, pelo menos desde 2013, vem sendo rejeitado e censurado pela unanimidade dos brasileiros.
Dizendo de forma direta e sem rodeios: a opção pelo distritão representa uma tentativa de preservação do establishment político. É fato notório, amplamente relatado no noticiário político, que os políticos tradicionais estão temerários de que a opção por um sistema eleitoral alternativo, com maior possibilidade de impacto sistêmico, possa levar a uma renovação nos quadros da Câmara dos Deputados em prejuízo das velhas lideranças político-partidárias. A primeira tentativa de autopreservação surgiu com a pretensão de se adotar o voto em lista fechada (que seria o extremo oposto do distritão: neste o eleitor vota apenas no candidato; naquele o voto vai apenas para o partido). Diante da rejeição geral pelo modelo, o establishmentvoltou a considerar uma proposta, derrotada ao tempo da “era Cunha”, que serve aos seus propósitos, porém permite uma maior manipulação das informações, de modo a confundir a opinião pública a respeito de suas verdadeiras intenções. O presidente do Senado, por exemplo, pode justificar “racionalmente” a opção pelo distritão, aduzindo a falta de tempo hábil para que a Justiça Eleitoral organize os distritos específicos e regionais já para eleição de 2018 como fundamento para que essa fosse a regra de transição...! Ora, se essa informação for realmente verdadeira, por que não estabelecer, então, que, para 2018, o sistema eleitoral continuará sendo aquele previsto pela Constituição de 1988?
O nosso sistema proporcional pode até não funcionar adequadamente (não por demérito do sistema em si, mas, sim, pelo modo como ele é articulado entre nós, com a possibilidade de disputa com coligações partidárias e sem a previsão de uma cláusula de barreira), todavia é possível afirmar que, mesmo assim, ele é melhor do que o distritão. Afirmando sem medo de errar: se o relatório aprovado pela comissão prevalecer, estaremos como que a marchar para trás no quadro de evolução do nosso sistema político.
Para aqueles que apreciam aquelas listas púberes que enumeram os “prós” e “contras” de algo, a única coisa que podemos admitir como certa na fileira dos “prós” é que o distritão se apresenta como um sistema eleitoral de simples compreensão para o eleitor. Todo o resto, na verdade, viria na fileira de “contras”. Note-se: i) como a disputa entre os candidatos se dá perante todos os eleitores da unidade federativa, os partidos tendem a lançar menos nomes para a escolha; ii) os escolhidos para a disputa, por sua vez, serão aqueles com maior projeção, preferencialmente os já conhecidos pelos eleitores, seja pela exposição que possuem na mídia, seja pela relação antecedente com a máquina pública; iii) as campanhas continuaram a exigir significativo dispêndio financeiro, uma vez que os candidatos terão que buscar votos em todo o Estado, necessitando, para isso, de maior capilarização eleitoral. Há mais. Porém, estamos satisfeitos com essas três.
Há também um falso “pró”. Ou, pelo menos, um pró “meia-boca”: afirma-se, em favor do modelo, que o distritão acabaria com o “efeito Tiririca”, que seria uma das mais censuráveis disfunções de nosso sistema proporcional (consubstanciado no seguinte fato: o eleitorado que confere expressiva votação ao candidato midiático, como no caso do deputado Tiririca, elege também, sem ter a exata consciência disso, um político tradicional de baixíssima expressão popular). Sem embargo, essa é uma verdade apenas parcial: de fato, não haveria a possibilidade de, com sua expressiva votação, o candidato midiático carregar consigo políticos de baixa popularidade. Mas, por outro lado, é possível prever, com alto grau de probabilidade (e nem precisa ser vidente para isso), que um candidato como o deputado Tiririca acabará reeleito numa disputa regida pelo distritão. Com isso, privilegia-se a manutenção dos atuais quadros, segurando uma vaga que poderia ser de algum novo ator da política nacional. Agregue-se a isso que os partidos têm o controle de quais candidatos serão lançados para o escrutínio popular. Portanto, a possibilidade de manter-tudo-como-está seria altíssima.
Importante considerar, também, que o distritão seja, talvez, o sistema eleitoral menos testado de todos aqueles que se apresentam no horizonte das discussões sobre a reforma política. Pouquíssimos países, como Jordânia e Afeganistão, o adotam. Existe, também, a experiência do Japão, que chegou a adotá-lo no segundo pós-guerra, mas resolveu abandoná-lo no final dos anos de 1980, porque houve uma percepção generalizada de que o sistema político poderia degenerar-se em um modelo próximo àquilo que Marcos Nobre chama, entre nós, de Peemedebismo[1] Provavelmente, o “brilhante” histórico do distritão deve ter motivado nossos congressistas, com apoio do governo, a vê-lo com bons olhos. Afinal, se aqui o sistema proporcional não está funcionando muito bem, talvez países como Afeganistão e Jordânia — exemplos de democracias muito bem consolidadas –— possam ajudar-nos a aperfeiçoar o sistema político brasileiro.
Ironias à parte, é preciso que reconheçamos que há certos temas nacionais que devem ficar acima de nossas paixões por partidos. Podemos discordar se o sistema distrital puro é o melhor para o modelo político que desejamos no Brasil; se o sistema proporcional pode chegar a funcionar corretamente com uma cláusula de barreira efetiva; ou ainda, se o melhor, para nós, seria mesmo seguir o caminho alemão, com a adoção de um sistema eleitoral misto. Podemos discordar sobre qual é o melhor, mas certamente partimos do pressuposto comum de que todos eles são sistemas consolidados e que já passaram por algum teste relevante, em regimes democráticos muito bem estabelecidos. Em um contexto como este, faz parte do jogo democrático aceitar a escolha por um desses modelos, ainda que não seja aquele que melhor se ajuste às nossas convicções pessoais. Todavia, se a escolha positiva por um modelo é uma questão aberta e necessariamente controversa, uma definição ex adverso, ou seja, a respeito daquilo que não queremos (em hipótese alguma), parece-nos ser consensualmente possível. Assim, seria possível afirmar que, de todos os sistemas eleitorais em disputa, dois deveriam ser — de plano — rechaçados: o voto em lista fechada e o distritão. E isso deveria ser uma voz comum, atravessando todos os atores sociais, independentemente de suas paixões partidárias.
Temos exemplos de sobra de como o sistema político no Brasil manobra as regras democráticas para atingir seus desideratos. Lenio Streck nos conta, em seu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, a história do regulamento Cesário Alvim (Decreto 511, de 23 de junho de 1890), que, para balizar os trabalhos da Constituinte que geraria a Constituição de 1891, transformou o sistema distrital puro do Império para o voto em listas, o que permitiu que os republicanos construíssem uma maioria para aprovar seu projeto de Constituição sem maiores problemas[2]. A história é sempre a mesma: quem controla os lugares de poder estabelece regras vazadas pelos interesses pessoais utilizando alguma retórica de vontade popular. Assistimos a um eterno retorno do mesmo?
Talvez a literatura possa nos socorrer, na tentativa de compreender melhor essa situação. Com efeito, em A Guerra do Fim do Mundo, de Mario Vargas Llosa, o romancista peruano descreve o caráter autoritário da modernização do Estado brasileiro ao falar de uma das maiores tragédias ocorridas após a proclamação da República, que foi a Guerra de Canudos. Um movimento messiânico mal compreendido, formado por pessoas que viviam à margem da sociedade e que sofriam cotidianamente com a seca e com a violência, ora do policial (os volantes), ora do banditismo local (o cangaço e os jagunços a serviço do latifúndio), acabou duramente sufocado pelo Exército brasileiro. A partir dessa tragédia social, o romance retrata alguns elementos fundamentais da organização da jovem República. A implementação de um projeto autoritário de construção da nação pode ser percebido no idealismo militar do Coronel Moreira Cesar e na presença do poder tradicional e personalista representado pelos personagens Barão de Canabrava, líder dos monarquistas, e Epaminondas Gonçalves, principal representante do partido republicano. Se no primeiro caso temos um representante do projeto positivista de uma ditadura militar — tanto que Moreira Cesar foi um grande aliado de Floriano Peixoto —, os dois últimos personagens representam o velho estilo com que as elites brasileiras sempre procuram sequestrar a agenda política, ao transformar temas públicos em assuntos da esfera doméstica. Foi nesse sentido que, numa determinada passagem do romance, o Barão de Canabrava e Epaminondas Gonçalves, antigos adversários políticos na Bahia, resolvem dialogar sobre a necessidade de uma “nova” ordem política como reação a Canudos. Nas palavras do primeiro, “[...] É hora de fazer as pazes, Epaminondas. Esqueça as divergências jacobinas [...]. Assuma o governo e defendamos juntos, nesta hecatombe, a ordem civil”.
Pensemos o seguinte: ordem civil, no contexto da reforma política, pode ser a transformação do sistema político tão desejada pela sociedade brasileira ou a manutenção do establishment. Assim, seria de se perguntar: “Ordem civil” de quem, cara-pálida?!

[1] Apesar desse conceito fazer referência ao PMDB, Nobre destaca que o fenômeno do peemedebismo não se reduz somente a esta organização partidária, mas é utilizado em sua obra para explicar o funcionamento do sistema político brasileiro (Cf. NOBRE, Marcos. Imobilismo em Movimento. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, passim).
[2] STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 496.

 é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
 é professor de Teoria Geral do Estado, doutorando em Direito Público pela Unisinos e membro do grupo Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2017, 8h05

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