Procuradores da "lava jato" do Rio de Janeiro fizeram um delator comprar, sem licitação nem autorização da Procuradoria-Geral da República, um equipamento de espionagem israelense como parte do pagamento de sua multa civil.
As informações constam de petição da defesa do ex-presidente Lula protocolada nesta segunda-feira (26/7) no Supremo Tribunal Federal. Na peça, há trechos de conversas entre procuradores de Curitiba que mostram como eles buscaram criar um sistema de espionagem cibernética clandestina. E, ao discutir sobre como fazer isso e qual tecnologia utilizar, mencionam que a "lava jato" do Rio já tinha concretizado o plano. As conversas, periciadas pela Polícia Federal, têm como base mensagens de chats entre membros da finada "lava jato" obtidas por hackers e apreendidas na operação spoofing.
Em 23 de novembro de 2017, o procurador de Curitiba Roberson Pozzobon sugeriu a criação de um "bunker de investigação" no gabinete do procurador Deltan Dallagnol. Segundo ele, seria um espaço estruturado com oito computadores, sendo quatro computadores para servidores dedicados exclusivamente às demandas do bunker e quatro computadores a serem ocupados, alternadamente (de dois em dois dias), por duplas de procuradores e seus assessores.
De acordo com Pozzobon, o "bunker de investigação" otimizaria esforços em demandas específicas, aproximaria procuradores de analistas de pesquisa e facilitaria a análise de dados e documentos. A criação do espaço envolvia a compra de softwares de espionagem cirbernética, como os desenvolvidos pela israelense Cellebrite, e de sistemas de armazenamento que permitiriam viabilizar a criação de um "big data" no gabinete de Dallagnol.
O procurador Januário Paludo levantou a questão de que equipamento comprar. Outro procurador, identificado como Paulo [possivelmente Paulo Roberto Galvão de Carvalho] respondeu, sugerindo que fosse seguido o exemplo da "lava jato" fluminense: "Januário, pensamos em comprar o Celebrite, que o Rio está usando e gostando, mas colocar essa compra direto num acordo de colaboração vindouro".
Paludo questionou a legalidade da medida. "Juridicamente complicado o colaborador 'doar' num acordo. Teria que amarrar a cláusula com o art. 7 da 9.613 e o juiz decretar o perdimento. Como o RJ fez?".
O artigo 7º da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) estabelece que é efeito da condenação, além dos previstos no Código Penal, a perda, em favor da União ou dos estados, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé.
O parágrafo 1º do dispositivo determina que a União e os estados, no âmbito de suas competências, regulamentarão a forma de destinação dos bens, direitos e valores cuja perda houver sido declarada. Já o parágrafo 2º prevê que os instrumentos do crime sem valor econômico cuja perda em favor da União ou do estado for decretada serão inutilizados ou doados a museu criminal ou a entidade pública, se houver interesse na sua conservação.
O procurador Athayde [provavelmente Athayde Ribeiro Costa], então, explicou a Paludo como os integrantes do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro operacionalizaram o esquema. "Jan, no RJ foi pactuada a multa civil apenas. Na homologação foi pedido a autorização para q o colaborador adquirisse o big data como parte do pagamento da multa, com base em preço definido em 'ata de registro de preços' em vigor."
Athayde enviou o pedido que os procuradores do RJ enviaram ao juízo - a 7ª Vara Federal Criminal do Rio, titularizada pelo juiz Marcelo Bretas.
"Em razão disso, requer autorização para que no acordo de colaboração premiada firmado com ENRICO VIEIRA MACHADO, os valores da multa civil fixada em R$ 2.650.000,00 (dois milhões, seiscentos e cinquenta mil reais) sejam pagos pelo colaborador ENRICO VIEIRA MACHADO da forma seguinte: a) o valor de R$ 2.175.082,33 (dois milhões cento e setenta e cinco mil e oitenta e dois reais e trinta e três centavos) por meio de transferência em espécie para conta judicial; b) cessão de 2 (dois) kits com equipamentos e softwares para extração e análise de dados de celulares ao Ministério Público Federal e 1 (um) kit idêntico à Polícia Federal, cujo custo equivale aos valores remanescentes da multa civil".
"Pode ter dado certo, mas não está certo. hehe. Em leniencia não teria problema", opinou Paludo. "So que leniencia tem q passar pela 5CCR e pode dar pau ....", respondeu Athayde, citando a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão (Combate à Corrupção) do MPF.
"Conversei com o Marcelo na época e ele se convenceu que poderia. No crime nos temos a multa penal= fundo penitenciário; multa civil+ vítima e perdimento crime diverso=darf para união e perdimento lavagem=destinação aos órgaos. No cível tudo se cria..", avaliou Paludo.
A empresa que vendeu o equipamento é a Tech Biz Forense Digital. O site da companhia diz que o programa é um "instrumento de investigação original e poderoso" que "coleta automaticamente os dados e metadados existentes na nuvem e os prepara em um formato de análise forense". "Os examinadores podem pesquisar, filtrar e classificar de forma eficiente os dados para identificar rapidamente detalhes ('Quem? Quando? Onde?') de um crime e avançar em suas investigações".
Conforme o site da Tech Biz, "o acesso aos dados privados é instantâneo e é possível obtê-lo com ou sem o consentimento do usuário". A empresa faz a ressalva de que esse acesso facilitado "não exclui a necessidade de mandados de segurança, sendo apenas um facilitador do processo, que costuma ser longo".
O software compila e cruza dados de diversas fontes, como Twitter, Facebook e Gmail. Além disso, permite que as informações sejam compartilhadas com outros investigadores ou programas de apuração.
A compra do programa por Machado foi feita sem licitação nem autorização da Procuradoria-Geral da República. O acordo de colaboração premiada do empresário foi homologado pelo juiz Marcelo Bretas, que também autorizou a aquisição do equipamento.
Tratava-se do Pegasus, sofisticado programa de espionagem israelense, que despertara interesse do consórcio paranaense. O programa de vigilância, que inclusive já fora oferecido ao governo brasileiro na gestão do presidente Jair Bolsonaro, foi criado originalmente para combater o crime organizado e o terrorismo, mas uma investigação, divulgada pelos principais jornais do mundo, mostrou que o software foi utilizado para monitorar jornalistas, ativistas e opositores em vários lugares do mundo. O programa permite invadir telefones celulares e acessar dados como contatos, localização, gravações, bem como ativar a câmera e o microfone, sem ser descoberto.
O ministro Ricardo Lewandowski, relator da Reclamação 43.007, encaminhou na manhã desta segunda-feira (26/7) o documento para análise da Procuradoria-Geral da República e da Corregedoria-Geral do Ministério Público Federal.
Segundo a petição assinada pelos advogados Valeska Teixeira Martins e Cristiano Zanin, da defesa do ex-presidente, "a operação "lava jato" teve contato com diversas armas de espionagem cibernética, incluindo o Pegasus".
Numa conversa no chat do grupo de procuradores em 31 de janeiro de 2018, é citada uma reunião entre os membros da "lava jato" do Rio de Janeiro, de Curitiba e representantes de uma empresa israelense que vendia uma "solução tecnológica" que "invade celulares em tempo real (permite ver a localização etc)".
A ConJur entrou em contato com o MPF-RJ, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
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