Em carta dirigida à esposa (Heloisa de Medeiros Ramos), datada de 7 de maio de 1937, o escritor alagoano Graciliano Ramos registrava que havia escrito um conto sobre a morte de uma cachorra. Dizia que a empreitada (o troço) era difícil. Afirmava que procurava adivinhar o que poderia se passar na alma de uma cachorra. Perguntava se cachorros teriam alma. A cachorra que Graciliano mencionava, ainda personagem de um conto, estará mais tarde em “Vidas Secas”, livro indispensável. O nome da cachorra é “Baleia”. No livro “São Bernardo” Graciliano também constrói um outro cão personagem: o “Tubarão”. Baleia, no entanto, é mais marcante do que Tubarão. Baleia e Tubarão não estão ou vivem no mar. São cães. Na escolha desses nomes pistas que marcam um escritor de ideias firmes. Teimosia até. Cães com nomes de seres do mar.
Há na tradição literária uma extensa lista de cães que veiculam alegorias narrativas, geralmente de fortíssima tensão psicológica. Nessa lista, o Cão das Lágrimas, de José Saramago. O Cão das Lágrimas enxugou as lágrimas da Mulher do Médico, no “Ensaio sobre a Cegueira”. O Cão das Lágrimas confortou a Mulher do Médico, desamparada nas ruas. A Mulher do Médico buscava comida para os cegos que ficaram na prisão. Era uma valente personagem. O Cão das Lágrimas retorna no “Ensaio sobre a Lucidez”. Confiram seu fim. Não se desapontem. O Cão das Lágrimas era um cão encantador, que percebia quem dele necessitava.
Há também Argos, o fiel cão de Ulisses, cujo encontro, após muitos anos de ausência, é uma apologia da amizade e do apego. É um canto lindo da Odisseia. Quando o herói retorna da Guerra de Troia, irreconhecível, disfarçado, em busca de Penélope (a esposa), de Telêmaco (o filho) e de seu reino, ameaçado de todos os modos e formas, é Argos quem o reconhece. O cão está abandonado, velho, doente, com piolhos no corpo todo. Argos morre ao perceber a chegada de Ulisses. Intuiu que Ulisses ainda não podia se revelar e, por isso, deixou-o passar.
Há o Quincas Borba, o cão, e não o personagem (porque há os dois) de Machado de Assis. Parece-me que Quincas era bonito, cor de chumbo, malhado de preto. Quincas (o personagem) o batizou com o próprio nome, talvez porque pretendesse sobreviver, no nome do cão. Achava que morreria antes. Rubião, o herdeiro do Quincas (personagem) foi incumbido de cuidar de Quincas (o cão). Quincas (o cão) somente tem boas lembranças. Não se recorda dos chutes que levou. Recorda-se apenas dos carinhos e dos afagos. É fiel até nas memórias.
A fidelidade parece ser o traço comum desses cães. De onde o clichê, fidelidade canina, que parece um fato comprovado. Curioso e intrigante como a tradição opõe cães e gatos, fixando nesses últimos a dissimulação e o desprendimento, e naqueles primeiros a atenção e o envolvimento. Será possível?
Nessa tradição sobressai-se Baleia, tal como se apresenta na cativante narrativa de Graciliano Ramos. Segundo um de nossos maiores críticos (Carpeaux, naturalmente) o lirismo de Graciliano é “amusical, adinâmico, estático, sóbrio, clássico, classicista, traindo, às vezes, um passado parnasiano do escritor”. Segundo o mesmo crítico, Graciliano é meticuloso, elimina tudo o que não é essencial. Essa premissa crítica é constatada nas belíssimas páginas de descrição da cachorra Baleia, uma das mais líricas e tocantes de nossa prosa literária. O contraste entre o que evoca uma baleia e uma cachorra magra é desafiador. Na teoria literária esse contraste lembra o oxímoro, uma figura de linguagem que confunde dois enunciados excludentes. Uma cachorra magrinha e adoentada não pode ser uma baleia.
Na narrativa de Graciliano Baleia é uma cachorra de fato doente, que estava para morrer. Absolutamente magra, é desenhada como a cachorra cujas costelas avultavam em fundo ósseo. Resistiu a vários sofrimentos. Fabiano (o tutor da cachorra, na linguagem de hoje, não se fala mais em dono do animal) não vê outra alternativa senão sacrificá-la. Uma vida de pobreza e dificuldade, em um tempo muito diferente do nosso, não sugere proximidade ou possibilidade de cuidados veterinários. Fabiano havia tentado um rosário de sabugos de milho, queimados em torno do pescoço de Baleia, por quem sem dúvida tinha muito afeto.
Foi buscar a espingarda. As crianças da casa suspeitavam que Baleia corria perigo. E tinham razão. Baleia era uma pessoa da família. E a referência - - pessoa - - não é alegórica ou metafórica. A decisão de Fabiano, no entanto, era necessária. Pobre da Baleia, lembra o narrador. As crianças da caça se insurgem. A mãe, Sinhá Vitória, pretende controlar os filhos. Choram alto. O tiro de Fabiano atinge e inutiliza uma das pernas da cachorra. Baleia foge, em desespero. Corre com três patas. Um destino desconhecido que busca aos pulos. Perdia sangue. O narrador conta-nos que Baleia começava a andar como uma pessoa: com dois pés.
Exausta, Baleia caiu, junto às pedras justamente onde os meninos da casa jogavam as cobras mortas. Prossegue Graciliano, lê-se que uma sede horrível queimava a garganta do animal. Latia (na verdade uivava baixinho). Queria morder Fabiano, mas não podia, era uma cachorra submissa. Sentia o cheiro dos preás, queria apanhá-los. Sentia a ameaça do objeto desconhecido (a espingarda, certamente).
Na luta, lembrava ainda que precisava vigiar as crianças. Que angústia. Tremia. Uma onda fria tomava seu corpo. Queria dormir. E queria sonhar com um mundo cheio de preás. Queria sonhar que lambia a mão de Fabiano. Era um mundo de preás, gordos, enormes. Queria sonhar.
Graciliano, na figura de Baleia, nos dá uma lição de pureza, de inocência e de honestidade. Por intermédio de uma cachorra tocou no insondável mistério da alma humana, pelo menos no que somos no potencial de nossos sonhos. A Baleia, que à beira da morte sonhava com preás saborosos, pode ser puro exemplo de que é possível a fé sem certeza. Graciliano não caiu na tentação de explicar o mistério pelo próprio mistério. A fé que Baleia revelava ao fim de uma vida triste não excluía a precariedade. Essa é a dúvida que o narrador comunica ao leitor, em forma de solução que garante a paz. Tudo muito humano. Afinal, não há nada, absolutamente nada, que nos impeça de sonhar.
Revista Consultor Jurídico
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