É costume afirmar-se que decisões judiciais não se discute, se cumpre. No entanto, na prática o que mais se faz no Brasil é discuti-las e, muitas vezes, tentar descumpri-las. A irresignação é natural no humano
E, claro, ninguém é obrigado a cumprir ordem que considera ilegal. Por isso mesmo é que o ordenamento jurídico assegura a todos — inclusive a terceiros interessados 3 — o direito de buscar no Poder Judiciário a proteção de seus direitos (artigo 5º, XXXV, CF e artigo 3º c.c. artigo 119, CPC).
Más é imperativo lógico que os comandos judiciais devem ser acatados por todos. Falharia o Poder Judiciário na sua função essencial de prestar jurisdição — aplicação imparcial do direito na solução de litígios —, se suas decisões fossem ignoradas e não contasse com meios eficazes para prevenir e reprimir essas condutas ilícitas.
O ordenamento jurídico prevê diversas medidas destinadas a prevenir e reprimir todo tipo de embaraço ao exercício da jurisdição, incluindo ato que tenda a ofender um juiz ou tribunal na administração da justiça, ou diminuir sua autoridade ou dignidade, incluindo a desobediência a uma ordem judicial, tanto no processo civil (artigo 77, IV e VI e artigo 139 do CPC) quanto no processo penal (artigo 330 e 331 do CP).
A questão aqui consiste em saber se o comportamento de Elon Musk é, ou não, capaz de justificar as medidas adotadas pelo ministro Alexandre de Moraes do STF no último domingo (7/4), especificamente sua inclusão como investigado no inquérito que apura a existência de milícias digitais antidemocráticas e seu financiamento e a abertura de investigação por obstrução à Justiça, “inclusive em organização criminosa e incitação ao crime (artigo 359 do Código Penal e artigo 2º, § 1º, da Lei 12.850/13) e incitação ao crime (artigo 286 do Código Penal)”.
O primeiro aspecto a ser analisado é a relação do herdeiro sul-africano com as decisões supostamente afrontadas. E no caso essa relação é inequívoca, pois houve determinação expressa do STF para que a plataforma X, da qual ele é proprietário, suspendesse determinados perfis de investigados criminalmente em inquéritos em andamento.
De acordo com o despacho do relator, “os representantes dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, em especial o ex-Twitter atual “X”, tinham conhecimento das ações das denominadas milicias digitais, na divulgação, propagação, organização e ampliação de inúmeras práticas ilícitas nas redes sociais, especialmente no gravíssimo atentado ao Estado democrático de Direito e na tentativa de destruição do Supremo Tribunal Federal, Congresso e Palácio do Planalto”.
Haveria — ainda segundo o despacho — uma instrumentalização criminosa das plataformas por referidas milicias digitais, fato que as chamadas big-techs não poderiam negar porque participaram de diversas reuniões com grupo de trabalho constituído no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), discutindo o problema.
Examine-se agora se as expressões por ele utilizadas em rede social possuem teor capaz de indicar a ocorrência dos crimes enunciados. Repare-se: de início, Musk teria indagado: “Por que você exige tanta censura no Brasil?”
A provocação teria advindo na sequência de acusações de censura feitas pelo jornalista norte-americano Michael Shellenberger na quarta-feira (3/4). Segundo Shellenberger, “o Brasil está envolvido em um caso de ampla repressão da liberdade de expressão liderada pelo ministro do STF, acesso em 9/4).
Antes, no dia 6, teria postado: “Estamos levantando todas as restrições. Esse juiz [Alexandre de Moraes] aplicou multas pesadas, ameaçou prender nossos funcionários e cortou o acesso ao X no Brasil. Como resultado, provavelmente perderemos todas as receitas no Brasil e teremos que fechar nosso escritório lá. Mas os princípios são mais importantes do que o lucro”… (idem).
Na mesma data teria dito que: a “censura agressiva” do STF “parece violar a lei e a vontade do povo do Brasil”…. (idem).
O blog da CNNBrasil noticiou: “Neste domingo (7), Musk afirmou ainda que a empresa publicará, em breve, tudo que é exigido pelo ministro e provar como os pedidos desrespeitam a legislação do Brasil”. “Este juiz traiu descaradamente e repetidamente a constituição e o povo do Brasil. Ele deveria renunciar ou sofrer impeachment.”
E, prossegue: “Musk finaliza a mensagem dizendo “Vergonha, Alexandre. Vergonha”, mencionando novamente o ministro do STF, acesso em 9/4/2024).
O conjunto de expressões ofensivas à lisura da atuação do ministro Alexandre de Moraes expõe, no fundo da querela, o mesmo mote utilizado pelos demais investigados: a liberdade de expressão ou de informação, de que se julgam cerceados injustamente por atuação do ministro.
Portanto, a análise do comportamento não deve ser isolada da conjuntura dos fatos investigados nos referidos inquéritos, sob pena de chegar a uma visão parcial e equivocada da realidade. O contexto fala mais que o texto!
Parece correto, nesse sentido, a inclusão do agente como investigado no inquérito que apura “a existência de milícias digitais antidemocráticas e seu financiamento” (Inq. 4.784), pois, como é manifesto, não se cuida da crítica de um cidadão inconformado com a atuação do ministro, mas de um ataque feito pelo proprietário de uma grande plataforma — que controla milhares de perfis em sua rede social no país — que desafia a seriedade das decisões adotadas pelo mais alto tribunal brasileiro para apurar graves crimes contra o Estado democrático de Direito.
As expressões parecem destinadas a incutir na população a sensação de escândalo, passar a ideia de que o STF age deliberadamente contra a lei e a Constituição, traindo sua missão primária. As ofensas não visam atacar a honra pessoal do julgador; trata-se de ação claramente orientada para a desmoralização do Supremo Tribunal Federal, na esteira do processo de desmoralização do TSE adotado pelos investigados nos referidos inquéritos.
Ameaçar descumprir ordens judiciais, reativando perfis suspensos — usinas de crimes contra a democracia — e retirar sua empresa do Brasil é um desafio e uma coação à Justiça, o que dá a dimensão do desprezo do agente pelo país, revelando convicção de que não será alcançado pelas leis brasileiras.
E Musk não pode ignorar a gravidade de seu comportamento, pois se fizesse isso nos Estados Unidos, pais onde mora, certamente já estaria preso, já que naquele país tais comportamentos são severamente punidos.
Donald Trump, por exemplo, foi punido com multa de US$ 10 mil por ter dito: “Este juiz é um juiz muito partidário, com uma pessoa que é muito partidária sentada ao lado dele, talvez até muito mais partidária do que ele”. (aqui em 9/4/2024).
E a ninguém se oculta que esse tipo de estratégia pode render engajamento de novos seguidores, a alavancagem de novos perfis simpatizantes da causa dos investigados, anunciantes e mais dinheiro para a plataforma, a revelar uma conexão de objetivos ilícitos da maior gravidade entre os diversos atores.
Uma ação desse tipo, inclusive com possível participação de um jornalista estrangeiro, pode ter distintos objetivos e motivações; de todo modo, o dinheiro é o elemento comum, como meio de financiamento para uns, e como fim para a maioria dos participantes.
E é de se convir que, se há indícios de associação criminosa entre políticos e de detentores de alto poder econômico, a resoluta entrada do proprietário de uma das maiores plataformas digitais no empreendimento criminoso representaria maior empoderamento, a prognosticar ataques ainda mais intensos e perigosos aos bens jurídicos tutelados, a justificar redobrado acautelamento por parte do Poder Judiciário.
Ação penal
A se comprovar a suspeita de que a plataforma X associou-se às milicias digitais, não há dúvidas de que o agente poderá ter incorrido nos crimes que se apuram naquele inquérito e haverá de responder como qualquer outro cidadão a eventual ação penal, com todas as consequências, na medida da sua culpabilidade, segundo o devido processo legal.
Por outro lado, não parece haver elementos indicativos, ao menos por ora, de que o mesmo comportamento possa constituir crimes de obstrução à Justiça em organização criminosa e incitação ao crime.
As expressões utilizadas não parecem dirigidas a incitar, instigar, estimular, encorajar outrem à prática de crimes, como exige o tipo do artigo 286 do Código Penal. Tampouco parece válida a ideia de que o agente pretendesse, mantido o quadro fático apontado, impedir ou de qualquer forma, embaraçar a investigação de infração penal que envolva organização criminosa, previsto no artigo 2º, § 1º da Lei nº 12.850/13.
Embora esses objetivos possam estar na linha de previsibilidade do agente e esses resultados possam vir a ser alcançados, caso seja cumprida a ameaça de reativação dos perfis suspensos, um exame objetivo dos fatos nesse momento não autoriza, a meu ver, a investigação por referidos crimes.
Aguardemos os próximos capítulos.
Fonte: Conjur
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