Em 5 de fevereiro de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) proferiu um julgado de interpretação da sentença no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, referente a graves violações de direitos humanos perpetradas por forças policiais em duas incursões em uma das comunidades situadas no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em uma operação de repressão ao tráfico de drogas e tráfico de armas, em 1994 e 1995. Em razão da atuação da Polícia Civil e Militar, foi reportada a morte de 26 homens (inclusive adolescentes) e a ocorrência de abusos sexuais e tortura contra três mulheres (dentre as quais duas também eram adolescentes).
A partir da leitura da sentença originária (2017) e do recente julgado interpretativo (2018, o primeiro em um caso envolvendo o Brasil), é possível perceber que a situação de insegurança pública na cidade do Rio de Janeiro, agora marcada pelos brutais homicídios da vereadora Marielle Franco (Psol) e de seu motorista Anderson Gomes (em 14/3/2018), é tema que inspira preocupação há algumas décadas.
Essa condenação internacional contra o Brasil versa sobre a legitimação da violência policial a partir da utilização de procedimentos diferenciados, conhecidos como “autos de resistência”, regulamentados administrativamente em alguns estados da nossa federação, para investigar a ocorrência de potenciais “execuções extrajudiciais” praticados por policiais em serviço.
A investigação já partia do pressuposto que eventual morte seria justificada a priori por uma espécie de presunção de resistência ilegítima da vítima. A Corte IDH fixou inúmeras reparações, dentre as quais o dever de investigar devidamente as mortes para identificar, processar e, se for o caso, eventualmente punir os responsáveis pelos eventos. Ademais, determinou que o Estado brasileiro iniciasse uma investigação eficaz a respeito dos fatos de violência sexual contra as três mulheres.
Após a sentença, as vítimas apresentaram pedido para a interpretação de sentença. A questão mais controversa referiu-se aos limites existentes ao dever de investigar as mortes e os abusos sexuais perpetrados. Neste ponto, a sentença internacional dispõe que o Estado deve se “abster de recorrer a qualquer obstáculo processual para eximir-se dessa obrigação, por tratar-se de prováveis execuções extrajudiciais e atos de tortura […]”.
Os peticionários (pelas vítimas) solicitaram que a sentença interpretativa esclarecesse expressamente o alcance da expressão “obstáculos legais” contida na decisão. A preocupação se justifica, tendo em vista que a prescrição poderá ser invocada pelo Estado como causa impeditiva de persecução penal, diante do transcurso de quase 25 anos da data dos fatos. Por sua vez, o Estado questionou se a prescrição poderia se encaixar na categoria dos obstáculos legais que não poderiam ser oponíveis ao cumprimento da sentença internacional.
Na recentíssima sentença de interpretação, a corte reiterou que os atos de violência policial reportados no caso Favela Nova Brasília constituem graves violações de direitos humanos, razão pela qual, fazendo alusão à sua jurisprudência anterior, o Direito Internacional proíbe que determinados institutos jurídicos obstem o prosseguimento do processo, tais como a prescrição. O tribunal internacional relembra que algumas formas de violência de gênero, tais como abusos sexuais, constituem ofensa à integridade física e, nas situações mais acentuadas, podem ser categorizados como tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante. Em vez de declarar diretamente se o estupro (e demais atos de violência de gênero) seria enquadrado como tortura, a corte relegou ao Poder Judiciário interno o dever de analisar pormenorizadamente cada situação, a partir do devido processo, de forma a permitir a tipificação de cada uma das situações de violência. Por isso, a corte acabou por não listar a priori, de modo peremptório, quais os obstáculos legais vedados.
Inegavelmente, o processo penal em um contexto tão complexo representa um grande desafio tanto para a acusação (que personifica a proteção das vítimas) quanto para a defesa criminal dos acusados (que também titularizam direitos humanos). Sem dúvidas, a questão deve ser enfrentada de forma serena e comprometida, sendo que o Estado brasileiro deve seguir os padrões internacionais de direitos humanos estabelecidos em casos semelhantes, aprendendo com os equívocos de um passado ainda recente.
A luta é por mudanças estruturais, para evitar que outras pessoas passem por situações análogas de abuso, humilhação e tortura. Nesse sentido, ainda que o devido processo penal seja um dos caminhos eleitos pela Corte Interamericana, é importante que o caso represente uma abertura de diálogo e reflexão dentro das instituições policiais, para que se interrompa o ciclo de violências institucionais que, em vez de entrar em declínio a partir de uma condenação tão marcante, parece estar escalando de forma temerária e ascendente, neste limiar do ano de 2018.
Quando as polícias ou outras forças de segurança praticam atos de violência contra a população civil, o direito à segurança acaba por ser violado. O desrespeito aos limites de atuação pode dar ensejo a uma grave violação de direitos humanos, causando uma situação prolongada de deslegitimação e descrença nas instituições, como a que fora reportada no histórico (e triste) contexto das incursões em Nova Brasília.
André de Carvalho Ramos é procurador regional da República e professor de Direito Internacional Privado e de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP.
Isabel Penido de Campos Machado é defensora pública federal em São Paulo e mestre e doutoranda em Direito Internacional dos Direitos Humanos (USP).
Revista Consultor Jurídico, 17 de março de 2018, 12h24
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